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Privado: Somente os bárbaros podem se defender

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por Flávio Ricardo Vassoler

I. Are we mad?

A terra é azul fosforescente

Moscou, 9 de maio de 2008. Estação de metrô Парк Победы (Park Pobedy, “Parque da Vitória”). Nas extremidades do longo corredor principal da estação, descubro que a Rússia faz questão de se lembrar das barricadas de sua história com dois painéis emblemáticos.

O painel à direita retrata o Príncipe e Marechal-de-campo Mikhail Ilariónovitch Goleníschev-Kutúzov (1745-1813) secundado por seu Estado-Maior. A data do painel é inequívoca: 1812. Kutúzov e seu Alto Oficialato são os heróis da resistência à invasão das tropas francesas comandadas por ninguém mais que Napoleão Bonaparte.

O painel à esquerda leva a Praça Vermelha, o coração de Moscou, à estação Parque da Vitória. Soldados soviéticos são ovacionados, mulheres, crianças e idosos se abraçam em êxtase, flores e boinas vão ao ar, um jovem embasbacado ainda não acredita no que os alto-falantes do Kremlin acabam de anunciar:

– Camaradas, o dia de hoje entra para a história! Nosso Exército Vermelho acaba de coagir a besta fascista à capitulação incondicional, o III Reich já não existe mais! 9 de maio de 1945 passa a ser o Dia da Vitória, camaradas, a Grande Guerra Patriótica acabou! Viva o Guia Genial dos Povos que nos alçou da invasão fascista à vitória final, camaradas, viva o grande Stálin!

Para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), não houve a Segunda Guerra Mundial, mas a Grande Guerra Patriótica (1941-1945). Em 1939, às vésperas da invasão nazista à Polônia, o III Reich e a URSS firmaram um pacto de não-agressão que recebeu o nome de seus mediadores e respectivos ministros das relações exteriores: Joachim von Ribbentrop e Viatcheslav Mikháilovitch Mólotov. O pacto Ribbentrop-Mólotov, além de estabelecer um período de cinco anos de pax atomica entre a Alemanha nazista e a URSS, acordou a cisão da Polônia entre as duas potências e selou o destino dos Países Bálticos – Lituânia, Letônia e Estônia – e da Finlândia. Ainda assim, dois anos após a assinatura do pacto, Hitler invadiria a União Soviética e passaria a lutar nas Frentes Ocidental e Oriental.

O pacto de não-agressão entre o III Reich e a URSS, além de dar sobrevida ao fortalecimento militar soviético, fez com que a Blitzkrieg nazista se irradiasse, por providenciais dois anos, contra a Europa Ocidental e, sobretudo, contra a Inglaterra.

Quando os Aliados pisam sobre os escombros do III Reich e decretam o fim da Segunda Guerra na Europa, soldados ingleses, norte-americanos e soviéticos brindam com scotch e vodca ao ritmo da balalaica. (Lara Müller, a alemã que há algumas semanas se hospedou na mesma casa em que estou morando aqui em Chicago, me contou que, à época, sua avó ficou simplesmente atônita quando, pela primeira vez em sua vida, viu um homem negro – um soldado norte-americano – em sua cidadezinha na Bavária. Enquanto isso, a Democracia na América ainda separava o joio do trigo ao dispor banheiros, escolas, teatros, assentos de ônibus, igrejas, empregos etc. do etc. para as colored people de modo a alijar os negros do American Way of Life.)

Em fevereiro de 1945, durante a famosa Conferência dos Aliados realizada em Ialta, uma estação balneária às margens do Mar Negro, na Crimeia, Winston Churchill, Franklin Delano Roosevelt e Ióssif Stálin, diante da vitória iminente, começam a projetar a partilha da Europa após a guerra. Os soslaios de desconfiança recíproca entre anglo-saxões e soviéticos parecem corroborar um velho provérbio árabe: “Aquilo que o teu inimigo não puder saber, não o digas ao amigo”.

Há setenta anos, o fim da Segunda Guerra Mundial preparava o início da Guerra Fria.

Antes da era nuclear, a razão de Estado podia prolongar as guerras de modo a exaurir o exército inimigo e a população civil. Em resposta aos ataques aéreos nazistas que devastaram Londres, a Royal Air Force lançou mão de bombas incendiárias – as famosas blockbusters (arrasa-quarteirões) – para levar as noites brancas de São Petersburgo às cidades alemãs e a seus bunkeres. (Nas décadas posteriores à última Grande Guerra, o capitalismo transnacional – e monopolista – transformaria a blockbuster em slogan para o princípio de livre iniciativa que arrasa toda e qualquer concorrência.)

Com o advento da era nuclear, a razão de Estado precisou recuar. Os líderes continuam a não se importar com as agruras e tragédias de suas populações, mas uma guerra atômica extinguiria, num átimo, toda e qualquer possibilidade de sobrevivência – isto é, toda e qualquer possibilidade de exploração lucrativa dos espólios da guerra. Armados até os dentes com ogivas, mísseis, caças e submarinos nucleares, EUA e URSS, as maiores potências bélicas de que a história já teve notícia, transformaram a guerra total em completa impossibilidade. Não foi a razão de Estado que, ao se democratizar, isto é, ao incluir o conjunto da população para a tomada das mais importantes decisões, chegou à conclusão humanista de que a guerra é a maior das barbaridades. Na verdade, foram a corrida armamentista e a iminência da hecatombe nuclear que levaram às últimas consequências o velho adágio romano: “Se queres paz, prepara-te para a guerra”.

Não à toa, os militaristas de Washington e Moscou foram chamados à razão – isto é, ao conteúdo de verdade que, como Pandora em seu cárcere, ainda resiste à revelia da razão de Estado – diante da iminência absoluta da Mutual Assured Destruction, a “Destruição Mútua Assegurada”. Transformar São Petersburgo em Hiroshima e Chicago em Nagasaki disseminaria ataques nucleares como reações em cadeia. A Terra se tornaria um cogumelo radioativo. Ao fim e ao cabo, se o cosmonauta Iuri Gagárin conseguisse escapar do apocalipse a bordo da mesma nave espacial que o tornara o primeiro ser humano a viajar pela órbita terrestre, a frase do soviético a contemplar nosso planeta do espaço se tornaria a lápide da história humana:

— A Terra é azul.

Azul fosforescente.

É por isso que a pax atomica assentada sobre a Mutual Assured Destruction pode ser coagulada, coerentemente, pela sigla/diagnóstico MAD: quando a fragilidade racional da vida depende do ápice da desrazão e de sua corrida armamentista, a loucura se confunde com o princípio de realidade e alicerça a reprodução do cotidiano.

II. Visões da guerra civil

Porque você logo pode perder,
porque você logo vai perder

Se a aniquilação nuclear (ainda) não se realizou, a sociopatologia da vida cotidiana parece ter se transformado na segunda natureza da realidade com o recrudescimento do capitalismo. Quando a crise se instaura e se agrava, o ódio purulento rompe a membrana da civilização.

A guerra total dá lugar à guerra civil.

Somos todos generais em miniatura, potenciais cossacos, vítimas e carrascos.

Os sinais da guerra civil, declarada ou não, se alastram como uma epidemia. A guerra se confunde com a paz. A guerra civil recomeça a cada segunda-feira. Em São Paulo, ela arregimenta os trabalhadores sonolentos sob a chuva gélida junto ao ponto de ônibus sem cobertura. Na Cracolândia, os dejetos humanos se esgueiram sob viadutos e árvores – contanto que os zumbis viciados não atrapalhem a circulação dos trabalhadores, a PM apenas observa. Os guetos ao sul de Chicago não precisam de arame farpado para segregar os negros. Basta que a especulação imobiliária e a gentrificação sigam as leis impessoais de mercado. Em um vagão do trem, observo como os cidadãos de bem olham de esguelha para o mendigo que se esparrama por vários assentos. (Os olhares de asco e ódio difuso quiçá estejam à espera de um programa vindouro para esterilização dos pobres.) As linhas azul e vermelha do trem, em Chicago, funcionam 24 horas por dia. Como abrigo para as noites friíssimas de inverno, os mendigos dormem no trem. E quem são os miseráveis da América? Há muitos ex-combatentes que lutaram pelo estabelecimento da democracia (de mercado) no Iraque e no Afeganistão. Certa noite em que estou voltando para casa, me ponho a conversar com George, o mendigo/ex-combatente que esteve em Cabul. Ele mal consegue concatenar frases, o álcool já entorpece suas ideias. À iminência de descer em minha estação, tiro a luva da mão direita para cumprimentar George. Ele arregala os olhos e, sem conseguir tirar a luva com a mão trêmula, usa os dentes e me estende a mão direita cujos tocos de dedos estão sem várias falanges.

— Puxei o pino da granada, you see, mas eu estava cercado, não pude atirá-la a tempo. Alguns estilhaços ficaram sob a pele, junto ao peito, mas eu nunca consegui encontrar os restos dos meus dedos.

Em Miami Beach, no belo calçadão da Avenida Ocean Drive a margear a praia, ouço passos estranhos se aproximando de minha nuca. Quando olho por sobre o ombro esquerdo, um senhor de braços dados com a esposa caminha irregularmente. Duas hastes de metal, abaixo de seus joelhos, fazem as vezes das canelas e dos pés. Como se não bastasse o espólio do Vietnã, o senhor aleijado ainda usa o boné e a camiseta do U.S. Army.

De volta a Chicago, um jovem mendigo me pede esmola no vagão do trem. A perna torta denuncia um acidente de carro. “O motorista me atropelou e fugiu. Eu não tenho dinheiro para fazer a cirurgia que, eventualmente, poderia consertar minha perna.” Mas e seus pais? Ele logo me diz que não sabe onde está o pai. Os pais haviam se separado há muitos anos. A mãe polonesa, por sua vez, fora deportada dos EUA. Algum tempo atrás, a fome fez com que ela roubasse alguns pães no supermercado. A mãe de Adrian já estava nos EUA há anos, mas não tinha dinheiro para pagar o processo de aquisição da cidadania norte-americana. Logo, diante de uma ladra de pães, a corte e a imigração decidiram pela deportação da mãe de Adrian de volta para a Polônia.

Quando me despeço de Adrian, ele me estende a mão e sentencia:

— Muito obrigado. E não falo apenas sobre o dinheiro. Agradeço a você por ter perguntado o meu nome. Fazia muito tempo que eu não ouvia o nome de alguém e que não conversava por mais de três minutos.

No Brasil, o ódio por detrás da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos ganha cada vez mais partidos e partidários. No dia 15 de março de 2015, durante uma manifestação contra o governo de Dilma Rousseff na Avenida Paulista – manifestação cujas facções mais reacionárias e golpistas pediam o impeachment da presidente recém-eleita –, consta que um notório torturador de nosso último período ditatorial teria subido em um carro de som e assim sentenciado:

— É uma pena, mas nós não tivemos tempo de fuzilar todos eles! Viva a ditadura militar!

Vários manifestantes tiraram fotos ao lado de soldados do Batalhão de Choque da Polícia Militar, de modo a ovacionar a truculência e a letalidade da tropa na periferia de São Paulo, por onde os inimigos públicos, pobres e pardos dos cidadãos de bem e de bens se esgueiram.

A recessão galopante no Brasil exacerba o hedonismo. Eu preciso sobreviver contra todos os demais. Contra todos. Mas a crise, a contrapelo do hedonismo, também desvela a atrofia do eu, o ódio por si mesmo. Quando todos somos descartáveis, o individualismo mórbido recrudesce a luta pela sobrevivência na mesma medida em que radicaliza o autodesprezo do exército de derrotados e o medo e o pânico dos vitoriosos que se tornam reféns do próprio privilégio.

Muros altíssimos encimados por cacos de vidro, fios de alta tensão e arame farpado. Câmeras onipresentes estupram a privacidade. Porteiros dão lugar a sentinelas armados. Quando um visitante chega a um condomínio de alto padrão nos Jardins, em Moema e/ou no Morumbi, em São Paulo, o funcionário recebe o forasteiro como um invasor. Muitas vezes, há dois portões: assim que o forasteiro chega ao prédio, o porteiro-sentinela colhe as primeiras informações – nome (do invasor) e (suposto) apartamento de destino; em seguida, por intermédio de um botão e sem jamais sair de sua guarita blindada, o porteiro-sentinela abre o primeiro portão. Segundo o princípio de presunção da culpa, o forasteiro fica preso entre o primeiro e o segundo portão até que os anfitriões autorizem a entrada do invasor que, só então, se torna um visitante.

Quando tamanha violência se naturaliza, somente os bárbaros podem se defender. Os bárbaros, os vencedores da barbárie, os prisioneiros do próprio privilégio. Para vencer em uma sociedade tão doente, não é preciso apenas trabalhar. (Já o Velho Testamento nos havia condenado a comer o pão apenas se houver suor contra o rosto.) Para vencer em uma sociedade tão doente, é preciso odiar o próximo como a ti mesmo, é preciso ter prazer em se mutilar, é preciso ter prazer em não voltar para casa até que a sobrecarga de trabalho seja minorada, é preciso inundar a própria casa (o home office) com a pilha de relatórios e planilhas, é preciso desprezar os derrotados pobres e pardos, é preciso enfileirá-los, encarcerá-los, empilhá-los – e desová-los. Os perdedores querem o mesmo que os vencedores, o hedonismo e o conforto ocupam o vácuo deixado pela morte de Deus, mas somente os bárbaros podem defender os frutos de sua pilhagem. Por isso, é preciso não pestanejar sequer por um instante – porque você logo pode perder, porque você logo vai perder.

Em 1947, com a memória da Paris sitiada pelos nazistas ainda contra a têmpora, assim escreveu (e ansiou) Jean-Paul Sartre em sua Sursis: “Por toda parte homens se juntam em torno de sopeiras fumegantes, partem o pão, enchem de vinho seus copos, limpam suas facas, e seus gestos cotidianos fazem a paz. Ei-la, tecida com todos esses futuros, impregnada da obstinação hesitante da natureza; ela é o retorno do sol, a imobilidade fremente dos prados, o sentido do trabalho dos homens”.

2015, setenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial:

Por toda parte homens se juntam em torno de sopeiras fumegantes, cindem as migalhas de pão, olham para o fundo vazio de seus copos, desembainham suas facas, e seus gestos cotidianos emudecem a paz. Ei-la, aguilhoada à fragilidade do futuro, prostrada diante da obstinação reincidente da sociedade; ela é o retorno da noite (a ronda noturna), a rigidez cadavérica das vielas, o ressentimento do trabalho dos homens.

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